Poderia ser mais uma matéria da série “Todd McFarlane X Fulano”, mas desta vez o final dessa história foi feliz! Entenda o por quê SPAWN 10 não foi republicado por quase 15 anos.

O ano era 2009, e uma nova coleção de luxo em versão capa dura (branca) de Spawn Origins estava para ser lançada no mercado (lembrando que já havia sido lançada em 2006 uma nova versão em capa cartonada – trade paperback, de cor branca, desta coleção, veja a lista completa dos encadernados aqui), porém ainda havia um pequeno grande detalhe para se resolver: cadê a republicação de Spawn #10!?

Reprodução da capa da edição #10 simulando como seria se tivesse sido lançada na época da saudosa Editora Abril. Imagem meramente ilustrativa. Ainda esperamos esta edição no Brasil!

Desde que foi lançada em Maio de 1993 (sim, exatamente 1 ano após o lançamento estrondoso de Spawn #1 em Maio de 1992) esta edição havia sido proibida de ser reimpressa pelo próprio Dave Sim, tanto nos Estados Unidos quanto fora do país. Por conta disso esta edição virou item raro e bastante cobiçado pelos colecionadores!

Mas esta é a história que a gente sempre escutou, que “Dave Sim proibiu a reimpressão porque brigou com Todd McFarlane” ou que “Todd McFarlane não pagou os devidos créditos a Dave Sim”. Será mesmo que foi assim que aconteceu? Vamos descobrir isto agora!

Comentamos brevemente sobre este assunto neste vídeo: https://youtu.be/_GgAFxytvSY

A verdadeira razão que a edição #10 nunca foi reimpressa na verdade ainda permanece um pouco nebulosa. Dave Sim, conhecido por ser um “papa” dos quadrinhos independentes, repudiou Todd McFarlane por estar se tornando exatamente aquilo pelo qual ele lutava contra quando estava na Marvel. O fato de McFarlane ter usado e abusado dos personagens Ângela, Spawn Medieval e Cogliostro sem ter pago os “devidos direitos” a Neil Gaiman deve ter atingido Sim, que comprou a briga e por isso proibiu que sua história fosse republicada e também fosse impressa em outros países, entre eles o Brasil, que teve a numeração atrasada e só se regularizou na edição #50.

Então o motivo poderia ser justamente porquê Dave Sim assim o queria, simples assim! Um dos motivos que justifica esta postura dele dizer “não quero, simples assim” é pelo fato que sua obra original CEREBUS também não foi permitida que fosse lançada em outro idioma, por qualquer outra editora que não fosse o inglês! Ele acredita que a edição feita no letreiramento dos balões para o idioma em que está se traduzindo a revista estraga a arte original do artista – e na maioria das vezes ele está certo, salvo exceções em que conseguem usar uma fonte próxima ou quando o letrista redesenha manualmente tudo. Todos os 16 volumes encadernados de CEREBUS foi lançado pela Aardvark-Vanaheim entre 1977 e 2004.

Outro ponto é que ele (Dave) considerava a história que escreveu fora da cronologia do personagem, ou seja, estava mais para uma história imaginária. Isso pode ser comprovado no prefácio escrito, pelo então coordenador da Image na época, Larry Marder para o volume 2 do encadernado de Spawn – que omitiu justamente esta edição 10 do Dave! Lá no texto ele (Larry) diz que ambos Todd e Dave não entraram num acordo para republicar esta história fora da cronologia oficial…

Em um certo momento, o próprio Dave Sim comentou que “Se você (Todd) republicar sem a minha autorização eu vou te derrubar.” Isso mesmo! Leia a carta que ele publicou como prefácio mais abaixo. E assim ficou até que por volta do ano de 2009 (mais de 15 anos depois) Todd quis sim reimprimir as edições de Spawn na ordem cronológica (compilando em 10 volumes, desde o número 1 até as edições por volta do número 120, veja a lista completa aqui). Eis então que a nova coleção de encadernados chamado “Origins” (hardcover, capa branca, com novos desenhos de Greg Capullo e cores de Clayton Crain) surgiram e a oportunidade de republicar Spawn #10 finalmente apareceu.

Para que a edição pudesse ser publicada, Todd ligou para Dave Sim e fizeram um acordo: “Te envio os scans em preto-e-branco da edição original para você, te pago o que precisa e você me escreve um prefácio para ser inserido antes da história”. Dave Sim aceitou mas disse que este “texto de introdução” deveria constar em todas as edições que ela for reimpressa a partir de então, ou não poderá ser republicada!

A carta de Dave Sim é um tanto quanto “áspera” e cheio de ironias e tiradas.

Famosa página dupla, em português, onde Spawn encontra os braços dos super-heróis presos atrás das grades da prisão do sétimo círculo (Erebus), e os seus respectivos criadores encapuzados bem na frente deles, com as mãos atadas!

Eis abaixo a reprodução do prefácio escrito por Dave Sim (publicado originalmente no encadernado volume 1 de Spawn Origins) e traduzido/adaptado por nós, em primeira mão:


Então Todd quer reimprimir a edição Spawn #10. Não foi reimpressa desde a primeira vez que saiu.

“Eu tenho umas pessoas que estão me enchendo o saco dizendo: cadê a edição Spawn #10?”

Quando isso sair, já vai ser notícia velha na CEREBUS TV (www.cerebustv.com), mas é um imbróglio interessante que aconteceu por telefone de um acordo bastante inovador, “O Acordo de Licenciamento Recíproco”. Eu cheguei com esta ideia para Peter Laird quando ele quis reimprimir a edição #8 de As Tartarugas Ninja [Teenage Mutant Ninja Turtles #8]. “Eu vou te deixar reimprimir se você me deixar reimprimir também – e me enviar os arquivos jpegs em preto-e-branco para que eu possa fazer em preto-e-branco.” “GAH! CORES!” Esta parte é autobiográfica. Não gosto de cores. A mesma coisa que aconteceu com Todd aconteceu com Pete [co-criador das Tartarugas Ninja, ao lado de Kevin Eastman]. Feito e sem conversa. Se a gente fosse levar isso aos advogados eles iriam nos cobrar uns 75 dólares a hora do serviço, além daquele lenga-lenga sem fim e muito blá blá blá. Em primeiro lugar somos cartunistas e em segundo somos editores. “O Acordo de Licenciamento Recíproco” nos traz de volta à prancheta de desenho. Isto que é coisa boa. Então, Todd e eu estávamos zombando e brincando no telefone e ele diz que quer uma introdução, um texto ou algo do tipo para explicar um pouco o que é isso. Porque, você sabe, as pessoas estão enchendo o saco dele para reimprimir esta edição… hum… que é tipo uma edição que meio que funciona de modo independente… de fato podemos dizer que é a história MAIS independente (isolada) de todas as edições de Spawn.

E eu estou rindo aqui bem quietinho porque Todd está querendo ser diplomático (o que é engraçado pois Todd NÃO É, e pra dizer no mínimo, um diplomata. Mas devo dizer que tenho a mesma reputação que ele. É um homem selvagem e maluco. Ele tem medo que eu fique bravo, full pistola – e o motivo, explicarei num minuto). Então eu o interrompi e disse, “Eles vão ler o texto e pensar ‘Agora eu REALMENTE não entendi.’” E então Todd ri. “Sim, eles vão estar procurando pelo Código Da Vinci em Spawn, e o que vão achar será um caça palavras.”

Então, me voluntariei para escrever uma introdução para “elucidar os leitores as dificuldades passadas inerente ao trabalho” (assim como um editor em nosso mundo de “assistência social” poderia lhe dar com isso). Basicamente, o que aconteceu foi que os garotos da Image estavam tendo muita confusão naquele primeiro ano a respeito da qualidade dos roteiros das HQs na Image Comics. Então Todd, que sempre trabalha com a teoria da menor distância entre dois pontos, está de olho na sua cara ao mesmo tempo que está dando um passo pra trás, atropelando você, e diz:

“Escritores? Vocês querem escritores? Tudo bem, eu vou atrás de alguns escritores. Quem é o maior roteirista de quadrinhos? Alan Moore. Tá certo, vou atrás do Alan Moore. Beleza, agora eu tenho o Alan Moore. Quem é o segundo maior? Neil Gaiman. Certo, Alan Moore já está escrevendo uma edição, você está dentro? Segundo maior? Tá brincando? Claro que ele tá dentro. OK, agora tenho uma disputa pra resolver. Quem mais seria um ótimo roteirista? Dave Sim. Tá ok então, me ligue com Dave Sim. Oh, Dave Sim? Ah, sim Sim. Tá bom. Que seja. Escute, aqui é Todd McFarlane – falando naquela voz anasalada que ele tem. Eu já tenho Alan Moore e Neil Gaiman numa disputa pra ver quem mija mais longe aqui, quer participar? Tá me tirando? Claro que ele já tá dentro. Alan e Neil venderam 100.000 de cópias dos seus quadrinhos e suas edições venderam tipo 12 cópias… Posso ouvir daqui ele preparando pra abrir uma lata de cerveja. Quem mais? Frank Miller. Todos eles escrevendo edições mensais do Spawn. Huh? Pra onde você foi? Eu podia jurar que tinha aqui um menininho catarrento magricelo um minuto atrás reclamando sobre maus escritores. Acho que meus olhos estão pregando uma peça em mim de novo.”

Perceba, Todd é um “atleta esnobe”. Uma vez deste tipo, sempre assim. E não só um “atleta esnobe qualquer”, um tipo particular de “atleta esnobe”: um “atleta convencido” igual Rickey Henderson [ex-jogador de beisebol]. Seu time joga contra ele, vai te deixar doido, mais extravagante, mordaz, desagradável e pretensioso. Mas se ele negocia a favor do seu, vai amar esse cara, porque ele vai deixar os outros times e os seus fãs mais doidos. Veja, Todd jogou beisebol na liga PRINCIPAL [da Universidade de Washington], porém chegou bem perto. Que, se tratando no campo de quadrinhos, onde a maioria das pessoas se parecem com aquele colecionador de quadrinhos do desenho de Os Simpsons, ou algo nessa direção, isso faz de você Barry Bonds [ex-jogador de beisebol], Wayne Gretzky [ex-jogador de hóquei] e Michael Jordan [ex-jogador de basquete], todos unidos num só. Mas um “atleta convencido”, no entanto. E uma coisa sobre ser um “atleta convencido” é que ele adora puxar as cordinhas, seja lá quem for você. É um mecanismo de policiamento, mantendo a equipe pura testosterona, sem estrogênio (no modo de dizer). Porque manter a calma sob pressão é a diferença, por muitas vezes, entre um time de campeonato e um time de várzea meia-boca.

Então, Todd me convida pra escrever uma edição de Spawn. Eu teria liberdade criativa completa. Qualquer coisa que eu quisesse escrever. Se eu quisesse escrever 22 páginas do Spawn sentado na privada, ele iria desenhar. O que seria bem impressionante. Sem Spawn sentado na privada, ok. Isto teria uma qualidade  visual única quando se faz um exercício mental, mas não tenho certeza se “impressionante” resumiria só com isso. O fato é que Todd está se esforçando para mostrar o quanto está disposto a entregar tudo em minhas mãos: ISSO SIM é impressionante. E estou indo mais adiante com isso. Eu nunca trabalhei como freelancer em outra HQ [pelo menos não sozinho]. Existiam apenas quatro edições já lançadas anteriormente, então não haveria problema em manter TODA a história anterior em mente. Eis que me surgiu a ideia de escrever uma HQ com crítica sociopolítica de 22 páginas basicamente falando sobre o trabalho sob demanda da prestação de serviços [o chamado “work-made-for-hire”], puxado pro lado do mercado de quadrinhos de super-heróis. Neste caso o que eu precisava imediatamente era de uma espécie de universo paralelo/Terra-2, onde pudesse ter este cenário. Alan Moore já estava trabalhando em seu roteiro. Então eu liguei a ele e lhe pedi para me passar um esboço do que estava escrevendo. Ele estava basicamente fazendo os círculos do inferno de Dante. Beleza, isto era perfeito. Aí estava minha Terra-2.

“Guarde um círculo do Inferno para mim, Alan – faça dele o 7º Nível: uga buga, aterrorizante, desconhecido.” Ele me certifica que vai fazer isso então. Isto é uma boa coisa sobre a comunicação entre escritores. Ele nem me perguntou o MOTIVO. O roteirista Dave Sim precisa de um círculo do Inferno para sua história, como sendo um roteirista-escritor amigo, Alan deixa à disposição.

Então liguei ao Todd e falei, “Você não precisa me dizer nenhuma surpresa que já pensou escrever daqui pra frente, só preciso de algumas referências delas.”

Foi onde todas aquelas coisas das primeiras páginas da história surgiram (recontando a história de Spawn/Não é Spawn). Depois, criei a imagem principal daquela sequência que tinha em mente sobre a crítica política, que aconteceu na página dupla mais a frente. Fiz apenas um rascunho de “braços genéricos de super-heróis” debruçados entre as grades de uma prisão… (Para se ter ideia do quão “arrogante” Todd é: Eu lhe dei uma descrição “genérica” e um tanto quanto “vaga”. Seria até um interessante caso judicial se a violação da marca registrada de um “único braço” poderia ainda assim ser mesmo uma violação de marca registrada. A decisão sobre a tentativa disso acontecer vai depender de que tipo de gastos financeiros estaríamos dispostos a pagar e as chances dos tribunais realmente extrair essa grana do autor. Eles não estavam esperando obter muito lucro de mim, mas – na época – Spawn estava vendendo cerca de um milhão de cópias por edição. Isto por si só poderia ser suficiente para dar a alguns executivos corporativos uma boa recuada, suficiente para estalarem os dedos e meditar sobre isso. Mas, como pode ver, “Todd-O-Maioral” passou direto pela rampa de saída que eu lhe dei) …e os compelidos criadores de cada um deles de frente para eles, todos encapuzados. Foi então que mandei um fax desta imagem para Neil Gaiman e o questionei se poderia incorporar esta cena na sua edição (sendo Neil a pessoa que é, um camarada adorável e acolhedor, ele seguiu em fazer isso: é um dos painéis da edição #9 quando Spawn é acordado de um sonho. A partir do roteiro original dele, no qual deixei na página: “A imagem inicial é uma que o Dave me enviou via fax, que ele quer por em sua edição. É uma página em preto-e-branco – sem cores nela: Spawn no meio, com vários braços tentando o alcançar.”)

Portanto, de certa forma esta história entra na continuidade da revista mensal, de modo que você vê Spawn/Não é Spawn habitando esta realidade alternativa, onde o pêlo de Cerebus é (GAH!) marrom, onde ele mora em Kitchener, Ontário, onde o Market Square ainda é o Market Square em vez de ser o prédio do jornal The Record, e onde o Peter’s Place ainda existe, embora tenha queimado até o chão em circunstâncias misteriosas no final de 1994 no sétimo círculo do Inferno criado por Alan Moore. Demorei alguns dias para escrever e digitar o roteiro, e fiquei muito feliz quando finalmente consegui terminar, enviei por correio para Todd e, uma semana depois mais ou menos, aí ele me ligou. “Oi, Dave! Peguei seu roteiro hoje.” “Ah, ótimo, Todd!”, respondi pra ele. “Pois é, então, ouça. Não posso usá-lo.”, ele me disse.

Simplesmente senti que precisava ir até ao banheiro sentar e ficar lá por uma meia hora, ou tipo isso. Felizmente, eu tava nos meus 30 anos mais ou menos e tinha um sistema de referência cruzada mental que clicou instantaneamente com estas quatro palavras: “atleta-convencido-esnobe-arrogante”.

“Veja bem, Todd,” falei pra ele, “Este é o único roteiro que você vai ter.”

“Tudo bem”, ele falou, sem hesitar um segundo, “Vou usá-lo.”

Devo confessar que também tenho um “atleta-convencido-esnobe-arrogante” dentro de mim (não pra tudo, mas pelo menos pra fazer uma pose quando estou, tipo, num bar bebendo depois de um dia de trabalho quem sabe), só pra fazer uma nota mental. Certo, agora eu devo uma a ele.

E foram ótimos três anos [lembrando que este texto foi escrito em 2009] até a oportunidade vir até mim e, infelizmente, eu estava bebendo (e olha que eu estava sóbrio desde 2003, por isso mesmo posso contar esta história: não é como se eu tivesse falando de outra pessoa). Eu não estava totalmente em si, não estava sentindo nada e ainda tinha uma galera perto do meu quarto de hotel depois da parada da loja de vinho de Chicago chamada Independent Spirits, um dos caras do Serviço de Imigração e Controle de Aduanas dos EUA (I.C.E), era Larry Marder, que até então era também um dos maiorais de dentro da Image Comics. 

E, a certa altura, me inclinei e disse a Larry: “Escute, diga a Todd se ele tentar reimprimir Spawn #10 sem me perguntar, eu vou passar o rodo nele. Vou com tudo pra cima dele.” Olha, eu definitivamente peguei Larry desprevenido, mas ele também percebeu que eu estava falando sério e me garantiu que sim, ele definitivamente daria a mensagem a Todd.

Olhando lá pra trás eu PRETENDIA receber, sim, um “Veja bem, escute. Eu não posso usar este roteiro.” Equivalente em termos de “quebrar as pernas” do outro cara [não no sentido literal] e… (veja bem, eu não tenho orgulho disso, mas eu era outro Dave naquela época) …tenho que confessar que ri por dentro quando vi que o primeiro encadernado do Spawn não incluía Spawn #10.

De qualquer forma, estou muito orgulhoso que tudo isso acabou após 14 anos. Todd me enviou os arquivos escaneados em preto-e-branco de Spawn #10 de forma que será publicado em qualquer encadernado de Cerebus algum dia e, assim espero, que Spawn #10 seja incluído em qualquer novo e futuro encadernado de Spawn, se o Toddespertinho decidir fazer disto uma apólice oficial da McFarlane.

Oh, e Alan, Neil, Frank? “Atravessando Realidades” [título original ‘Crossing Over’] ganhou o prêmio de fã da revista WIZARD de melhor história naquele ano!

Então, acho que sabemos quem ganhou o concurso de mijar mais longe.

DAVE SIM
Kitchener, Ontario
Sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Até a próxima matéria exclusiva e obrigado pela sua leitura!


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