Quem acompanha o mundo dos quadrinhos, principalmente Spawn, sabe que Todd McFarlane é um “colecionador” de processos feitos por diversas personalidades, sejam eles autores de HQs ou não. O mais controverso deles foi movido por Neil Gaiman sobre a propriedade de Ângela, Spawn Medieval, Cogliostro e Gabrielle, personagens que o autor britânico criou para a edição 9 de Spawn e que culminou com a perda de McFarlane nos tribunais e, consequentemente, a divisão de direitos sobre eles. Como resultado, Gaiman levou Ângela para a Marvel e atualmente faz parte do núcleo de histórias dos Guardiões da Galáxia (onde fez sua estreia) e Thor. Porém, antes deste processo acontecer, muita coisa ocorreu e por isso preparamos uma matéria especial contando tudo sobre o que levou os dois artistas a este embate. E tudo começou nos anos 80 com uma editora chamada Eclipse Comics.
Eclipse e Miracleman
A Eclipse Comics foi uma editora americana fundada em 1977 pelos irmãos Jan e Dean Mullaney e logo se tornou uma das maiores companhias independentes dos anos 80. Na editora foi publicada uma das primeiras HQs denominada como graphic novel modernas e a primeira que foi distribuída de forma comercial em comic shops. O título chamava-se Sabre: Slow Fade of an Endangered Species, criado por Don McGregor e Paul Gulacy e foi lançado em 1978. Algum tempo depois a esposa de Dean, Cat Yronwode entrou para e equipe.
Durante seu período de atividade muitos artistas e escritores passaram pela Eclipse como Chuck Dixon (Airboy), Steve Gerber (Destroyer Duck), P. Craig Russel (Ariane & Bluebeard), Mark Evanier (Crossfire), entre outros. Porém a sua maior aquisição foram os direitos de reimprimir e publicar todos os novos materiais de Marvelman escrito por Alan Moore e desenhos de Alan Davis e Garry Leach e que, após sua fase, passou o bastão para outro inglês: Neil Gaiman, que dividiu o título com Mark Buckingham, que ficou bastante conhecido ao desenhar a série Fábulas para a DC/Vertigo. Este título, quando teve que ser publicado nos Estados Unidos, teve o seu nome alterado para Miracleman para evitar problemas legais com a Marvel Comics.
Os primeiros sete números de Miracleman eram reimpressões da revista Warrior, e a partir da edição seguinte seriam publicadas histórias inéditas de Moore. Foi então que começaram a surgir os primeiros problemas: Alan Davis, um dos donos de copyright de Marvelman e desenhista do personagem, tinha assinado um contrato para que seu trabalho fosse impresso apenas na revista Warrior. Davis se sentiu profundamente magoado, principalmente com Alan Moore, por estarem publicando seu material sem sua permissão. Em 1986 Dez Skinn (fundador da revista Warrior) e Garry Leach (desenhista da revista) venderam sua parte de Marvelman para a Eclipse sem consultar Davis.
Os problemas da Eclipse aumentaram quando Toren Smith, que fazia a tradução da linha de quadrinhos japoneses da Eclipse através da sua empresa Studio Proteus, decidiu processar a editora por atraso nos pagamentos além de receber valores abaixo do esperado. O resultado fez com que a editora pagasse uma indenização de $ 122.328,00 a Smith que seria depositado diretamente em conta. Isto afetou a renda da empresa, e com isso os problemas de pagamentos de royalties com os criadores aumentaram já que todo dinheiro que entrava era usado para pagar a indenização.
Por causa disto, começou-se o jogo de acusações entre os três diretores sobre de quem era a culpa pela falta dos pagamentos. Cat Yronwode negou qualquer participação na parte financeira pois, segundo ela, cuidava apenas da área editorial e culpa o seu marido, Dean. Já este colocou a culpa em seu irmão, Jan, a quem foi atribuída a responsabilidade de envio de royalties mas que, pela falta de tempo, não podia fazê-lo. Como consequência Dean e Cat acabaram se divorciando.
Porém, Dean culpou parte da quebra da Eclipse por causa de um acordo de co-publicação com a editora HapperCollins para distribuição e venda de vários títulos nos EUA e Reino Unido. Porém, segundo Mullaney, os problemas apareceram quando ele pediu relatório de vendas de títulos como Miracleman e não obtinha retorno, assim não havia informações sobre royalties a serem pagos. Desta forma, ele teve que usar o dinheiro do capital da Eclipse para pagar os criadores já que eles, naturalmente, estavam cobrando os seus direitos, até chegar ao ponto em que o dinheiro acabou. A solução foi vender o estoque que tinha em mãos, pagar todas as dívidas pendentes e declarar falência.
Outro artista que também teve problemas financeiros com a Eclipse foi o brasileiro Mike Deodato Jr. O agente do desenhista, David Campitti, estava cobrando da editora uma dívida de $ 20.000,00 pela sua participação em um título nunca publicado chamado Miracleman: Triumphant além de trabalhos em outros títulos como materiais de Clive Barker e os acordos com a Fox para publicação de um título baseado na série Duro de Matar.
Só que, infelizmente para Campitti, o valor exigido não cobria os gastos com processos, que era muito altos. Isto o fez cair na prática chamada “cheque no correio”, que é um pagamento (seja sob a forma de cheque) que está a caminho ou será enviado em breve, e geralmente usado como desculpa para evitar a pressão dos credores ou de alguém que espera pagamento por bens ou serviços. Isto só serviu para irritar o agente que, ao entrar em contato com a HapperCollins, acabou descobrindo que a história sobre o não-repasse do relatórios de vendas para Dean Mullaney talvez não fosse verdade, o que foi comprovado através de relatórios enviados para Campitti. Depois de muitas tentativas de encontrar Mullaney para exigir o seu pagamento e este se esquivar, Campitty acabou desistindo da dívida e assumiu as despesas.
Voltando ao caso Miracleman, a crise era tão grande que os não-pagamentos de royalties se estendiam até a primeira edição. Assim, Alan Moore, Neil Gaiman, Mark Buckingham e Rick Veitch estavam sem receber. Na verdade, Veitch afirma que recebeu os royalties de reimpressão dos encadernados simples, mas não os de capa dura. A última edição (25) jamais foi publicada, porém em um acordo para saldar a dívida com Neil Gaiman, Cat Yronword propôs a devolução dos originais.
Mesmo Dez Skinn, que licenciou o material da Warrior para ser publicado nos Estados Unidos, estava tendo problemas para conseguir seu dinheiro já que a editora parou de usar os originais e passou a tirar fotocópias da revista britânica em uma tentativa de evitar o repasse. Porém, após ser pago por Jan Mullaney, a parceria retornou por um tempo.
Enquanto isto, Toren Smith estava sendo pago pela dívida, até que não havia mais dinheiro para saldá-la. Então Dean Mullaney ofereceu a Smith os direitos sobre Miracleman numa tentativa de finalizar a dívida. Foi então que surgiu a pergunta:
Quem realmente tinha os direitos sobre o personagem?
Quando Marvelman foi revivido na revista Warrior, Dez Skinn afirmava que tinha adquirido os direitos sobre o personagem através do Official Receiver, órgão do governo inglês que cuida de falências. Skinn tinha dito a Moore e Mullaney que Miracleman eram uma propriedade editora Len Miller & Son, que o criou para substituir o Capitão Marvel no famoso processo sobre plágio do Superman contra a editora Fawcett Comics. Com a falência da Len Miller & Son, o Official Receiver estava cuidando de suas patentes.
Porém, descobriu-se que a história não era bem assim: a Eclipse tinha assinado documentos onde Skinn afirmava que era dono do personagem e que agora estava vendendo sua parte para a Eclipse. Porém a propriedade também era compartilhada com Mark Buckingham e Alan Moore, portanto adquirir os direitos sobre Miracleman era mexer em um vespeiro.
Foi então que em fevereiro de 1986 o rio Russian, que atravessa o condado de Sonoma na Califórnia, transbordou após fortes tempestades e cobriu toda a área com água e lama. Muitos prédios e casas foram destruídos e pessoas perderam vidas, além de criar centenas de desabrigados. Uma destas casas inundadas pertencia a Dean Mullaney e Cat Yronwode.
Muito material da Eclipse como HQs desconhecidas, registros da empresa, artes originais, filmes negativos e outros foram perdidos para sempre. Uma destas perdas foram os originais de Miracleman #8 enquanto Dean e Cat lutavam para salvar suas vidas. O escritório da Eclipse, localizado no segundo andar de um prédio comercial, foi inundado e todos tiveram que ser retirados de helicóptero. Entre as perdas estava os sete primeiros números de Miracleman além de originais da Eclipse antes de 1986. Porém, isto contradiz uma afirmação de Neil Gaiman sobre o fato de que Dean Mullaney tenha vendido grande parte do material de Miracleman antes do leilão de falência da editora em 1996 para um comprador canadense, porém não se tratava de Todd McFarlane. Seu nome era Roger Broughton.
A seguir: A Falência e Leilão da Eclipse Comics
Matéria publicada originalmente no blog 20th Century Danny Boy e depois republicada no livro “The World Vs Todd McFarlane” de Daniel Best, que pode ser adquirido no site da Amazon Brasil.